Mônica Vermelha

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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O "migué" de Henrique Alves - Por Miguel do Rosário

Pesquisando no Google, achei uma historinha contada por um internauta sobre a origem da expressão “dar um migué”. Um musico, tinha que se apresentar, como não conseguiu, quando perguntaram para ele porque ele não foi, ele respondeu: não pude ir, mas eu mandei o miguel… o migué não apareceu? Embora a expressão me incomode um pouco, por razões óbvias, tenho que admitir que é uma dessas deliciosas brasilidades que se popularizam justamente pelo poder de síntese para resumir toda uma situação. A saída de Henrique Alves para contornar uma crise institucional entre o Supremo Tribunal Federal e o Legislativo foi justamente dar um migué. E o fez com muito engenho. Todo mundo ficou feliz, satisfeito, tranquilo, apesar dele não ter dito nada de concreto. Na verdade, uma crise institucional entre Legislativo e STF não interessa ao Brasil. Nem o problema político hoje é exatamente o Supremo, e sim o poder de uma mídia agigantada pelo monopólio e fortalecida pela postura de “cartel ideológico” adotada pelos principais grupos do setor.
Todos defendem a mesma ideia, publicam os mesmos editoriais, usam inclusive os mesmos colunistas. Roberto Romano, o professor de Ética, não sai do Globonews; dali corre para escrever um artigo para o Estadão a tempo de dar uma entrevista à Folha antes do jantar. Quer dizer, é uma conjunção de dois fatores: fraqueza de caráter de ministros do STF, que se vergaram aos holofotes; e força excessiva de um poder político não regulamentado, como é o da mídia. Renan Calheiros também teve a cautela, talvez até excessiva, de recuar vários passos em sua relação com a mídia, após a estrondosa bofetada, sem luvas, que seu partido aplicou nos udenistas, ao eleger um de seus bichos-papões para ocupar o cargo mais importante do Legislativo. Enfim, Henrique Alves deu um clássico migué porque o que ele vai fazer, pelo jeito, é empurrar o problema com a barriga até quase o final do mandato dos parlamentares condenados no processo do mensalão. Até se entende o escapismo astuto de Alves. Conseguiu desmontar o clima de guerra do fim do mundo que a mídia vinha criando em torno do conflito entre STF e Parlamento. Por aí se vê a diferença entre um político e um juiz. Um político negocia, encontra uma saída pacífica onde outros apenas viam guerra. Por outro lado, é uma saída lamentável. Porque chancela o esforço da mídia de criar uma espécie de República do Galeão contemporânea, formada pelo procurador-geral, Roberto Gurgel, alguns ministros do STF, além do batalhão de colunistas, chargistas e âncoras que trabalham sob as ordens de meia dúzia de famílias. Alexander Hamilton, em The Federalist, assevera a importância da separação entre poderes como um dos princípios basilares da tese democrática, ressaltando a sua origem moderna, com os escritos de Montesquieu, e ao mesmo tempo ponderando que não se tratava de uma separação absoluta. Os poderes são independentes, mas mantém conexões diversas entre si, agindo uns sobre os outros como contrapesos mútuos. A natureza de qualquer poder, repete Hamilton, é o “encrouchment”, ou seja, o poder tende a crescer onde há espaço para tal. Se o Legislativo abre a guarda para o STF, a tendência é este usurpar nacos de poder ao outro, como é o que tem acontecido agora. Joaquim Barbosa, por exemplo, tem repetido na imprensa que o Supremo é quem dá a palavra final. O jogo volta ao velhíssimo debate sobre quem é o dono da bola. Ora, mesmo na teoria democrática, não é ponto passivo a decisão última de uma questão legal. Hamilton lembra que, na Constituição Inglesa, que era para Montesquieu o que a obra de Homero foi para os admiradores de poesia épica, a apelação suprema final permanecia sob responsabilidade legislativa. Infelizmente, nem Montesquieu nem Hamilton puderam teorizar sobre uma democracia em que o chamado “quarto poder”, a imprensa, impôs-se tão tremendamente. A importância da imprensa é inegável. Mas há uma confusão deliberada entre o que ela representa e o valor, por exemplo, da liberdade de expressão. Uma coisa é a liberdade de expressão. Outra coisa é usar uma concessão pública como plataforma política. Isso está em debate em todo o mundo ocidental, democrático, e a briga tem sido mais feia na América do Sul por serem países onde seus conglomerados de mídia são herdeiros de ditaduras. Em todos os países, a mesma sinistra ironia: empresas de mídia que se agigantaram durante regimes de força, aos quais deram suporte, tornam-se verdadeiros partidos de oposição exatamente no momento em que a democracia desses mesmos países inicia um vigoroso processo de consolidação. Então o quarto poder, após a perda do estamento militar, começa a flertar com o estamento judiciário. Aliás, como eu li recentemente o livro de Raymondo Faoro, impressiona-me como as pessoas tem deturpado a sua crítica ao patrimonialismo das elites brasileiras. No Império e na República Velha, havia um sistema imoral de fraude eleitoral institucionalizada, além da existência de inúmeros filtros burocráticos que impediam o livre exercício do poder pelo cidadão. Após a relativa moralização do sistema eleitoral, Faoro observa o patrimonialismo renascendo de outra forma, através do alto funcionalismo público. Criava-se um novo estamento político. A teoria de Faoro estava certa. O golpe de 64 é um golpe de funcionários públicos. No caso, militares, mas com a anuência de magistrados, procuradores e burocratas de todo o tipo, inimigos que eram dos políticos. Com a radicalização democrática que vivemos na era Lula, esse ódio patrimonialista das elites exacerbou-se, e se espelha nos discursos ultra-agressivos de um Celso de Mello, de um Roberto Gurgel, de um Joaquim Barbosa. A classe média tradicional, assinante do Globo, tem relações orgânicas com esse estamento político. Fornece-lhe os quadros. Todo mundo quer ver seu filho se tornar um alto funcionário público, um procurador, um juiz. A política é considerada uma atividade menos nobre. É instável, corrupta, maléfica. Nas palavras da Dora Kramer, em sua coluna de hoje: [O Congresso] carece de condições morais para debater de igual para igual com o Judiciário devido aos débitos de suas excelências com a lei. E assim voltamos às soluções de força: não mais um golpe militar, mas ações concertadas entre os membros da República do Galeão, que jamais parou de funcionar (esteve sempre aí, julgando, condenando, derrubando). O STF diz que é dele o direito de cassar parlamentares. O Parlamento reage, diz que o direito, segundo a Constituição, é seu. Aí o Procurador-Geral aparece na mídia com ameaças de prisão por crime de responsabilidade. Dispara-se uma saraivada de artigos, charges e reportagens, e eis que o touro se cansa e morre na arena, exangue. Um político pode ser corajoso, mas suicida, só Getúlio. A mídia, com a desenvoltura que a falta de regulamentação lhe proporciona, emerge como um poder real na democracia, mas ao mesmo tempo simulando não fazer parte dele. A imprensa denuncia “os poderosos” sem alertar aos leitores que também ela é um poder, mas invisível. A teoria de Montesquieu sobre a separação de poderes, deveria servir à imprensa também. Para ela ser independente, o Estado deveria instaurar um fonte de recursos própria, autônoma, para os serviços de imprensa. E teríamos assim jornalistas públicos assim como temos procuradores, professores universitários, policiais, médicos e juízes. Com estabilidade, autoconfiança, bom salário, independente dos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, o jornalista poderia ser um profissional muito mais competente e muito mais feliz. Teria tempo de ler livros, estudar, e escrever matérias de boa qualidade. E haveria, naturalmente, um corregedoria autônoma para averiguar casos internos de desvios de conduta. A imprensa, aí sim, ganharia independência, não ficando à mercê de um sistema de publicidade alheio ao interesse popular, ou dos humores de meia dúzia de empresas com longo e triste currículo antidemocrático. Se a imprensa é tão importante para a democracia, esse respeito não deveria se dar apenas injetando recursos públicos no bolso de magnatas da mídia, como acontece hoje.

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